segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

yeah pussy blues (de volta à rua do fogo)


Descendo a rua da aurora, atravessando a rua do comércio, à esquerda, há a trav. sta. rita, que vai dar na rua sta. rita, que vai dar na rua da praia. Duas esquinas antes está a rua do fogo, também chamada da meretriz, um trocadilho infame com sua paralela sacra, a da matriz, também uma homenagem à senhora M., a cafetina do lugar. A rua do fogo, apesar do nome conveniente às atividades que por lá se estalaram, chama-se assim devido a um incêndio há muitos anos atrás, que começou por lá e foi até a igreja de sta. rita, mas não entrou, e teve como única vítima o padre da cidade.
Naquele tempo só havia no lugar a igreja de sta rita, e a rua do fogo era uma estrada cortando um gramado onde aos poucos foi surgindo um sobrado onde aos poucos foi juntando gente, em sua maioria párias. O prefeito não gostava de párias, mas eles votavam por qualquer trocado. A população não gostava de párias, mas eles se vendiam por qualquer trocado. O padre Z. não gostava de párias, e foi deixando isso cada vez mais claro em seus sermões. A população se indignava, o prefeito se comprometia, mas isso tudo só durava até a comunhão. Então, um belo dia, depois de ler sobre gomorra e discursar sobre pompéia, o padre Z. simplesmente cansou de esperar pelo bom senso de todos e terminada a missa foi pessoalmente à rua do sobrado, no segundo andar do qual morava uma viúva e suas duas filhas, a morena e a ruiva. Pária é tudo igual, esses servem. Penso nisso nesses termos e sorrio enquanto desço a aurora...
Apesar de sua raiva e do espanto da viúva eles começaram a se entender. A viúva ofereceu-lhe água, apontou-lhe um banco, contou como chegara ali, como era difícil sua vida, de seu desejo de saber mais das coisas de deus, e de como preocupava-se com a educação das filhas, principalmente da mais jovem, a ruiva, que passava a maior parte do dia e boa parte da noite na rua, e nesse ponto começou a chorar. O padre voltou-se para a mais jovem, para a mais velha, para a viúva, passou algum tempo calado, olhando para uma vela sobre a mesa, e então, perguntou à viúva se podia falar com sua filha em particular. E logo em seguida arrependeu-se, pois a casa era só aquele quarto, e o resto da família foi saindo calada quase que imediatamente, sobrando subitamente apenas o padre e a garota.
Qual sua idade, minha filha? - Quis saber o padre. Uns dezessete - Foi a resposta da garota. Uma mentira.
O que tanto você faz na rua o dia inteiro? - Quis saber o padre.
A ruiva estava sentada em uma cadeira ao lado de uma mesa em frente a um armário, tinha cabelos longos, olhos claros e corpo de mulher. Ela olhou para frente, para além do padre, depois à sua direita, depois levantou a perna esquerda e apoiou o pé na cadeira, depois, começou balançar os joelhos, dobrou uma perna sob a outra, apoiou ambos os pés no assento, uma de suas mãos segurava uma coxa, a outra fazia cachos, seu olhar passeou pelo teto, depois por ela mesma, e, finalmente, quando tornou a encarar o padre, este estava de joelhos, perplexo, rendido. E então, algum vesúvio, e o holocausto, não se sabe como. A garota sai correndo, a mãe entra gritando, logo volta, mas não afasta-se, até ser retirada pelos vizinhos, que mal têm tempo de salvar suas própias coisas e a si mesmos, nesta ordem. Em pouco tempo a rua do sobrado virou a rua do fogo, a rua dos párias, apesar desses terem a partir daí espalhado-se como brasas pela cidade, em um incêndio latente que sempre volta ao foco para celebrar seu estopim.
Findo a aurora, atravesso a rua do comércio, dobro à esquerda na travessa, desço pela sta. rita em direção à praia, páro duas esquinas antes, cá estou novamente. Entro na casa, dirijo-me ao balcão, peço algo, olho ao redor, lá está a velha M. em um canto, observando o lugar com olhos faiscantes.

sábado, 19 de janeiro de 2008

baque seco


Enquanto eu caía não vi minha vida passar, só a calçada estava lá, de ruas abertas me esperando. Cheguei ao meu fim pontualmente às doze. Mesmo desmaiado estou plenamente consciente de minha triste situação. Eu poderia me erguer, acho que conseguiria se tentasse, mas acho melhor não, talvez o melhor agora fosse morrer.
Infelizmente isso não sou eu quem decido e passados alguns minutos, ou horas, desperto. Mas não me ergo, estou decidido a não fazer nada por mim, nada que me tire dessa. Gostaria mesmo de afundar na calçada, ser tragado pelos esgotos e despejado no mar com o resto da sujeira, mas também já estou ficando cansado de esperar. Toda minha vida eu esperei, eu esperei a minha vez pacientemente, eu planejei cada detalhe minunciosamente, estudei as possibilidades, consultei os astros, calculei as chances, tropeçei por fim, caí, e não desejo me levantar mais pois tudo está perdido, bem sei. Agora mesmo os guardas já deram falta, não precisam nem contar dois mais dois para entenderem a coisa toda de tão simples que ela é: um corpo, uma maleta cheia de grana e uma mulher. Tudo muito clichê. E eu que sempre evitei os filmes de caubói e as loiras, por causa de uma estou metido em um.
Ela é o diabo. Penso nela enquanto morro...
Então, consciente, me ergo. Espero um pouco. Nada acontece. Percebo que não basta morrer, não é simples assim, e decidido a voltar a cair e dessa vez de uma vez por todas, volto ao bar. Quando o circo está armado os personagens assumem seus papéis, então, haverá um corpo nessa maldita história, o meu.
No bar conto alto a alguém que há um corpo na calçada em frente, todos ouvem, todos fingem que não. Absolutamente desconcertado, peço mais uma dose, ela não vem. Alguém se aproxima, patas e chifres, tudo bem clichê. Ele caminha devagar, ele carrega uma maleta. Apesar da aparência repugnante é um rosto amigo, familiar até. Não precisamos de apresentação, naturalmente. Ele me pede uma ficha, sai, faz uma ligação, retorna, larga sobre a mesa a maleta, na jukebox uma velha canção...

And I followed her to the station
with a suitcase in my hand
And I followed her to the station
with a suitcase in my hand
Well, it's hard to tell, it's hard to tell
when all your love's in vain
All my love's in vain

Ouço as sirenes, elas vêm em minha direção.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Rua Reta


Cruzando esquinas e seguindo em frente pela rua reta, meio indiferentes, meio tristes, meio contentes, ruminando um pouco em um café ou outro e, renovados, deixados sobre a mesa alguns trocados magnéticos, lépidos, seguimos em frente pela rua reta, não muita coisa em mente, o sol brilhando nos ângulos lassos do concreto armado por onde escorre a brisa que passando nos leva pela paisagem cinza, calçadas incertas.
Seguindo em frente pela rua reta - caleidoscópio de faróis, canteiro de gerúndios, sinfonia de buzinas - as bocas de lobo uivam por ali onde era aquele bar e agora é esse pátio - Um dia será um prédio, você me diz e ri e me dá a mão e, Rintrahs, as britadeiras roncam longe seus lacônicos monossílabos tônicos em staccato lerdo pelo ar carregado e um som vindo do passado ressoa em mim, e em mim, morna, a rua inteira transforma-se uma canção que - love supreme a love supreme a love supreme... Entoa o eterno mantra que continuamente nos traspassa e é tudo que importa, percebo, e então, páro, desapareço. Fim.