Todo relato sobre as origens do estado parte da premissa de que nós - não nós leitores, mas algum nós genérico, tão amplo a ponto de não excluir ninguém - participamos de seu nascimento. Mas o fato é que o único "nós" que nós conhecemos - nós mesmos e as pessoas próximas a nós - nascem dentro do estado; e nossos antepassados também nasceram dentro do estado até onde possamos situar. o estado existe sempre antes de nós.
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Se, apesar das provas dos nossos sentidos, aceitamos a premissa de que nós ou nossos antepassados criaram o estado, então temos de aceitar também suas implicações: que nós ou nossos antepassados poderíamos ter criado o estado de alguma outra forma, se tivéssemos escolhido; e também, que podíamos transformá-lo se assim decidíssemos coletivamente. Mas o fato é que, mesmo coletivamente,aqueles que estão "sob" o estado, que "pertencem" ao estado, acharão muito difícil mesmo mudar sua forma; eles- nós - são com certeza impotentes para aboli-lo.
Dificilmente estará em nosso poder mudar a forma do estado e é impossível aboli-lo porque, diante dele, nós somos, precisamente, impotentes. No mito da fundação do estado de Thomas Hobbes, nossa descida à impotência foi voluntária: a fim de escapar da violência da guerra mutuamente mortal e sem fim (represália sobre represália, vingança sobre vingança, a vendetta), nós individualmente e separadamente cefemos ao estado o direito de usar força física (direito é força, força é direito), consequentemente entrando no reino (na proteção) da lei. Aqueles que escolheram e escolhem ficar fora do bloco são foras-da-lei.
A lei protege o cidadão respeitador das leis. Chega até mesmo a proteger o cidadão que, sem negar a força da lei, mesmo assim usa a força contra o concidadão: a punição prescrita para o criminoso deve ser condigna com o crime.. Nem mesmo um soldado inimigo, na medidaem que é representante de um estado rival, deve ser morto se capturado. Mas não existe lei para proteger o fora-da-lei, o homem que pega em armas contra seu própio estado, isto é, o estado que o considera como seu.
Fora do estado (da comunidade, do statum civitatis), diz Hobbes, o indivíduo pode sentir que goza de perfeita liberdade, mas essa liberdade não lhe faz nenhum bem. Dentrodo estado, por outro lado, "é conservada por todo súdito tanta liberdade quanto lhe seja suficiente para viver bem e de maneira tranquila e é tirado dos outros aquilo que é preciso para perdermos o medo deles...Fora )do governo civil) assistiremos ao domínio das paixões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da ignorância, da solidão, da barbárie e da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência".
O que o mito hobbesiano das origens não menciona é que a entrega de poder ao estado é irreversível. Não está aberta a opção de mudarmos de idéia, de decidirmos que o monopólio do exercício da força exercido pelo estado, codificado pela leinão é o que queríamos afinal de contas, que preferiríamos retornar ao estado natural.
Nascemos sujeitos. Desde o momento de nosso nascimento somos sujeitos. Uma marca dessa sujeição é a certidão de nascimento. O estado aperfeiçoado detém e mantém o monopólio de certificar o nascimento. Ou você recebe (e leva consigo) uma certidão do estado, adquirindo assim uma identidade que no curso da vida permite que o estadoo identifique e localize(vá em seu encalço), ou você segue em frente e se condena a viver fora do estadocomo um animal(animais não têm documentos de identificação.
Não apenas lhe é vedado entrar no estado sem identificação: aos olhos do estado, você não morre enquanto não tiver uma certidão de óbito; e a certidão de óbito só pode ser dada por um funcionário que possua ele própio uma certidão do estado. O estado procede com extremo rigor na certificação da morte- veja-se o envio de uma horda de cientistas forenses e burocratas para esquadrinhar, fotografar, cutucar e espetar a montanha de corpos deixada pelo grande tsunami de 2004 a fim de determinar suas identidades. Não se poupam despesas para garantir que o censo de sujeitos esteja completo e acurado.
Se o cidadão vive ou morre não é preocupação do estado. O que importa para o estado e seus registros é se ele está vivo ou morto.
Quando a expressão "os bastardos" é usada na Austrália, por todo lado se entende a que se refere. "Os bastardos" foi um dia o termo dos prisioneiros para se referir aos homens que se diziam seus superiores e o açoitavam se ele discordava. Hoje "os bastardos2 são os políticos, homens e mulheres que controlam o estado. O problema: como afirmar a legitimidadeda velha perspectiva, a perspectiva de baixoa do prisioneiro, quando está na natureza dessa perspectiva ser ilegítima, contra a lei, contra os bastardos.
A oposição aos bastardos, a oposição ao governo em geral sob a bandeira do libertarismo, adquiriu um nome feio porque com muita frequência suas raízes se encontram na relutância em pagar impostos. Seja qual for a posição da pessoa sobre pagar tributos aos bastardos, um primeiro passo estratégico tem de ser distinguir-se desse traço libertário particular. Como fazêlo? "Pegue metade do que eu possuo, pegue metade do que eu ganho, eu cedo a você; em troca, me deixe em paz". Será que isso basta para alguém provar sua boa fé?
Etienne de La Boétie, o jovemamigo de Michel de Montaigne, escrevendo em 1949, viu a passividade da população em relação a seus governantes primeiro como um vício adquirido, depois como um vício herdado, uma obstinada 2vontade de ser governado" que acaba ficando tão profundamente enraizada "que mesmo o amor pela liberdade passa a parecer não tão natural".
Incrível ver como o povo, uma vez submetido, cai num tão profundo esquecimento de sua liberdade anterior que lhe é impossível despertar e recuperá-la, o povo serve tão bem, e tão voluntariamente, que ao vê-lo dirse-ia que perdeu não apenas sua liberdade, mas conquistou sua servidão. É verdade que, de início, a pessoa serve por coação e dominada à força; mas aqueles que vêm depois servem sem lamentar, e realizam de boa vontade o que seus predecessores realizavam por coação. Os homens nascidos sob o julgo, depois alimentados e criados na servidão, sem olhar adiante, contentam-se em viver como nasceram...Eles tomam como seu estado natural o estado em que nasceram.
Bem colocado. No entanto, La boétie entende de maneira errada um aspecto importante. As alternativas não são plácida servidão de um lado e revolta contra servidão do outro. Existe uma terceira via, escolhida por milhares e milhões de pessoas todos os dias. É a via do quietismo, do obscurantismo voluntário, da emigração interior.
Dificilmente estará em nosso poder mudar a forma do estado e é impossível aboli-lo porque, diante dele, nós somos, precisamente, impotentes. No mito da fundação do estado de Thomas Hobbes, nossa descida à impotência foi voluntária: a fim de escapar da violência da guerra mutuamente mortal e sem fim (represália sobre represália, vingança sobre vingança, a vendetta), nós individualmente e separadamente cefemos ao estado o direito de usar força física (direito é força, força é direito), consequentemente entrando no reino (na proteção) da lei. Aqueles que escolheram e escolhem ficar fora do bloco são foras-da-lei.
A lei protege o cidadão respeitador das leis. Chega até mesmo a proteger o cidadão que, sem negar a força da lei, mesmo assim usa a força contra o concidadão: a punição prescrita para o criminoso deve ser condigna com o crime.. Nem mesmo um soldado inimigo, na medidaem que é representante de um estado rival, deve ser morto se capturado. Mas não existe lei para proteger o fora-da-lei, o homem que pega em armas contra seu própio estado, isto é, o estado que o considera como seu.
Fora do estado (da comunidade, do statum civitatis), diz Hobbes, o indivíduo pode sentir que goza de perfeita liberdade, mas essa liberdade não lhe faz nenhum bem. Dentrodo estado, por outro lado, "é conservada por todo súdito tanta liberdade quanto lhe seja suficiente para viver bem e de maneira tranquila e é tirado dos outros aquilo que é preciso para perdermos o medo deles...Fora )do governo civil) assistiremos ao domínio das paixões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da ignorância, da solidão, da barbárie e da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência".
O que o mito hobbesiano das origens não menciona é que a entrega de poder ao estado é irreversível. Não está aberta a opção de mudarmos de idéia, de decidirmos que o monopólio do exercício da força exercido pelo estado, codificado pela leinão é o que queríamos afinal de contas, que preferiríamos retornar ao estado natural.
Nascemos sujeitos. Desde o momento de nosso nascimento somos sujeitos. Uma marca dessa sujeição é a certidão de nascimento. O estado aperfeiçoado detém e mantém o monopólio de certificar o nascimento. Ou você recebe (e leva consigo) uma certidão do estado, adquirindo assim uma identidade que no curso da vida permite que o estadoo identifique e localize(vá em seu encalço), ou você segue em frente e se condena a viver fora do estadocomo um animal(animais não têm documentos de identificação.
Não apenas lhe é vedado entrar no estado sem identificação: aos olhos do estado, você não morre enquanto não tiver uma certidão de óbito; e a certidão de óbito só pode ser dada por um funcionário que possua ele própio uma certidão do estado. O estado procede com extremo rigor na certificação da morte- veja-se o envio de uma horda de cientistas forenses e burocratas para esquadrinhar, fotografar, cutucar e espetar a montanha de corpos deixada pelo grande tsunami de 2004 a fim de determinar suas identidades. Não se poupam despesas para garantir que o censo de sujeitos esteja completo e acurado.
Se o cidadão vive ou morre não é preocupação do estado. O que importa para o estado e seus registros é se ele está vivo ou morto.
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Na época dos reis dizia-se ao sujeito: Você era súdito do rei A, agora o rei A morreu e olhe! você é súdito do rei B. Então chegou a democracia e o sujeito pela primeira vez se defrontava com uma escolha: Vocês (coletivamente) querem ser governados pelo cidadão A ou pelo cidadão B?
O sujeito se vê sempre confrontado com o fato consumado: no primeiro caso com o fato de sua sujeição; no segundo, com o fato da escolha. A forma de escolha não está aberta a discussão. A cédula de votação não diz: Você quer A ou B ou ninguém? O cidadão que expressa sua insatisfação com a forma de escolha pelo único meio que lhe resta - não votar ou anular o voto - simplesmente não é contado , quer dizer, é descontado, ignorado.
Diante da escolha entre A e B, dado o tipo de A ou o tipo de B que geralmente chega à cédula de votação, a maioria das pessoas, pessoas comuns, tende, em seu coração, a não escolher nenhum. Mas isso é só uma tendência, e o estado não lida com tendências. Tendências não fazem parte da moeda corrente da política. O estado lida é com escolhas. A pessoa comum gostaria de dizer: Em alguns dias eu tendo para a, outros para B, a maior parte dos dias eu sinto simplesmente que eles deveriam sumir; ou então, Um pouco A, um pouco B às vezese outras vezes nem A nem b, mas alguma coisa bem diferente. O estadosacode a cabeça. Você tem de escolher, diz o estado: A ou B.
02. Da anarquia
Diante da escolha entre A e B, dado o tipo de A ou o tipo de B que geralmente chega à cédula de votação, a maioria das pessoas, pessoas comuns, tende, em seu coração, a não escolher nenhum. Mas isso é só uma tendência, e o estado não lida com tendências. Tendências não fazem parte da moeda corrente da política. O estado lida é com escolhas. A pessoa comum gostaria de dizer: Em alguns dias eu tendo para a, outros para B, a maior parte dos dias eu sinto simplesmente que eles deveriam sumir; ou então, Um pouco A, um pouco B às vezese outras vezes nem A nem b, mas alguma coisa bem diferente. O estadosacode a cabeça. Você tem de escolher, diz o estado: A ou B.
02. Da anarquia
Quando a expressão "os bastardos" é usada na Austrália, por todo lado se entende a que se refere. "Os bastardos" foi um dia o termo dos prisioneiros para se referir aos homens que se diziam seus superiores e o açoitavam se ele discordava. Hoje "os bastardos2 são os políticos, homens e mulheres que controlam o estado. O problema: como afirmar a legitimidadeda velha perspectiva, a perspectiva de baixoa do prisioneiro, quando está na natureza dessa perspectiva ser ilegítima, contra a lei, contra os bastardos.
A oposição aos bastardos, a oposição ao governo em geral sob a bandeira do libertarismo, adquiriu um nome feio porque com muita frequência suas raízes se encontram na relutância em pagar impostos. Seja qual for a posição da pessoa sobre pagar tributos aos bastardos, um primeiro passo estratégico tem de ser distinguir-se desse traço libertário particular. Como fazêlo? "Pegue metade do que eu possuo, pegue metade do que eu ganho, eu cedo a você; em troca, me deixe em paz". Será que isso basta para alguém provar sua boa fé?
Etienne de La Boétie, o jovemamigo de Michel de Montaigne, escrevendo em 1949, viu a passividade da população em relação a seus governantes primeiro como um vício adquirido, depois como um vício herdado, uma obstinada 2vontade de ser governado" que acaba ficando tão profundamente enraizada "que mesmo o amor pela liberdade passa a parecer não tão natural".
Incrível ver como o povo, uma vez submetido, cai num tão profundo esquecimento de sua liberdade anterior que lhe é impossível despertar e recuperá-la, o povo serve tão bem, e tão voluntariamente, que ao vê-lo dirse-ia que perdeu não apenas sua liberdade, mas conquistou sua servidão. É verdade que, de início, a pessoa serve por coação e dominada à força; mas aqueles que vêm depois servem sem lamentar, e realizam de boa vontade o que seus predecessores realizavam por coação. Os homens nascidos sob o julgo, depois alimentados e criados na servidão, sem olhar adiante, contentam-se em viver como nasceram...Eles tomam como seu estado natural o estado em que nasceram.
Bem colocado. No entanto, La boétie entende de maneira errada um aspecto importante. As alternativas não são plácida servidão de um lado e revolta contra servidão do outro. Existe uma terceira via, escolhida por milhares e milhões de pessoas todos os dias. É a via do quietismo, do obscurantismo voluntário, da emigração interior.
2 comentários:
Lindo, lindo, lindo. Malatesta, em meu mantra cotidiano, diria: "Somos, todos sem exceção, obrigados a viver, mais ou menos, em contradição com nossas idéias; mas somos socialistas e anarquistas precisamente na medida em que sofremos esta contradição e que procuramos, tanto quanto possível, torná-la menor. No dia em que nos adaptássemos ao meio, não mais teríamos, é óbvio, vontade de transformá-lo, e nos tornaríamos simples burgueses; burgueses sem dinheiro, talvez, mas não menos burgueses nos atos e nas intenções."
cadê a referência?
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