quarta-feira, 27 de abril de 2011

antípodas





I


Deixassem-me em paz e não teriam nascido em mim esses chifres.

II

Eu sou um mau agouro.

Sequer sei se estou morto ou vivo, e isso não importa, se estou vivo é porque todos estão mortos, então, eu também. O tempo é cruel com quem o desafia. Esse é meu lamento. Tem o som de estilhaços, os cacos de um espelho inquebrantável.

Minha história é nebulosa, sem pé nem cabeça, uma nuvem de dados, como se costuma agora chamar. Seu começo é incerto, a conto um pouco por tédio, um pouco por necessidade, e, mal começada, já lhe anseio o final.

Eu sou brasileiro de nascença, não sei mais de que região, filho de índios, negros e brancos vira-latas, primo de mouros, sobrinho de tudo quanto é bicho do mato, católico da porta pra fora, da porta pra dentro depende da lua. Em minhas veias, se ainda as tenho, correm o Paraíba, o São Francisco, o Negro, o Solimões, o Amazonas... O Letes e o Aqueronte. Cheio de mim mesmo, tenho de transbordar minha história para poder esvaziar-me e livrar você de mim, porque, creia-me, eu sou um mal, um cancro que deve ser extirpado para que os outros gozem a vida em sua plenitude.

Ouça, nem sempre foi assim, eu já temi a morte, como todo mundo, como todo mundo nasci de uma mulher, cresci em casa de muita gente, uma casa grande, imponente, esparramada na paisagem como um buda em seu assento, cheia de regalias, um jardim, um galinheiro, um pomar, um açude, um chiqueiro, estribaria, curral, servos, escravos, e imensas plantações de cana-de-açúcar, ou café, ou algodão, ou borracha. Branco, verde, amarelo ou negro, não importa a cor do ouro, tampouco a procedência: Vai-se buscá-lo onde estiver, e mesmo quando não estiver é preciso que se vá buscá-lo. Isso eu não entendia, que nesse meu negócio a verdadeira matéria prima é a ganância.

Ouro: Espadas para extraí-lo, paus para mantê-lo, copas para perpetuá-lo.

E foi assim, traçando essas cartas marcadas, que logo cedo começou para mim a relação que me definiu. Em meu corpo as marcas que no começo exibia com orgulho, depois com medo, depois com indiferença, pois já não sei onde termino eu e começam elas, minhas espiroquetas. Foi por iniciativa delas, para satisfazer seus caprichos, que mandei construir a sala dos espelhos, meu esquife de vidro reluzente de onde observo o mundo que me ignora. Mas eu existo, eis aí um abacaxi que vocês vão ter de descascar. Para o seu azar, eu existo. Vá até o espelho mais próximo e encare o fato de frente. E tente não se assustar.

III

Paresia Geral. Cefaléias, confusão, convulsão e paralisia, e só então, com as meninges em chamas, a demência. Os japoneses culpam os portugueses, os franceses culpam os italianos que culpam os franceses, os poloneses culpam os alemães, e os russos culpam os poloneses. Ao que parece, findo as contas, a culpa é de Deus, e suas lições morais heterodoxas. E inúteis, pois Syphilus ainda toca seu rebanho para longe da luz:

Em minha cabeça vazia, panela do diabo, ferve em Banho-Maria a minha danação.

Olhe dentro da panela. Não diga a ninguém o que vê.
Se contar porá tudo a perder.
Você consegue guardar segredo? Você consegue guardar segredo até de você?

Olhe dentro da panela. Essas linhas, o almoço servido em pratos limpos, alvos como uma página em branco, a mesa posta... Convém rezar, agradecer o alimento, ainda que certamente um veneno, pois se não nos mata... E que tu cresça forte é minha prioridade. Mais forte que eu, ao menos, para que na punhalada semântica de um ponto final me ponhas termo. Tu, até tu, principalmente tu.

Coragem, homem, conduz o teu arado sobre os ossos de teus mortos. Assassina teu pai, assume o trono, desposa tua mãe, decifra este enigma. Leia as entrelinhas.

IV

Vidro, prata e alumínio, ou estanho, e voilá, aí o tens. E o que tens? Tu. Tu, tu, tu e tu, mil vezes tu. Tu Nação. Tu Legião. Tu, antípoda, e eu pensando que... Mas já faz muito tempo que não penso, só reflito. Mais um, eu, nessa sala que é o mundo e que um dia foi só uma sala, até chegarem os espelhos, a pedido meu, e encomendados pelos demônios que habitam minhas meninges. Mas disso eu não sabia. Eu não sabia de muita coisa. Eu pensava que tudo que reluz é ouro...
Eu não podia estar mais enganado.

E tudo não passa de um truque, de um golpe de vista, de um jogo de palavras que se revela quando visto do outro lado.

Ouro é tudo que reluz.
Louvado seja, meu cárcere de luz.

Quando chegaram foi uma noite nebulosa, chovia. Seis. Três por dois cada um, dois em cada lado. Pensos para frente, escoltando os janelões, e um em cada canto, de modo que, o que vissem os janelões, de pronto saberiam os espelhos, e diriam a mim.
Alguém, depois, chamou a isso Panóptico, a máquina de controlar perfeita, e não me deu o crédito, mas que se dane, não há crédito nisso, pelo contrário, e o preço é alto.

Naquela noite sentei-me aqui, onde estou, no centro da sala, à cabeceira da mesa, ao lado da escarradeira de prata, relíquia de família, e mandei vir a ceia. Comi, enrolei o fumo, acendi o cigarro e esperei, e dormi. A chuva foi parando de salpicar as telhas, o galo cantou, o sol nasceu, sua luz entrou pelos janelões do sobrado, rebateu nos espelhos, rasgou a mortalha que cobria o mundo e o dia clareou, eu abri os olhos e pude então tirar a prova de que minha máquina de ver tudo funciona. Desde então sou cego.

Vê? As Jóias da coroa de Édipo Rei são os olhos da cara

Entenda, eu vejo, posso vê-lo perfeitamente daqui de onde estou, estou agora mesmo te olhando nos olhos, aliás, mas não enxergo um palmo à frente do nariz. Eu olho para as costas nuas desta mesa de mogno em minha frente e vejo imensos campos de algodão, e as costas nuas de uma mesa de mogno, quando na verdade não se trata nem de um coisa nem outra; olho a palma de minha mão e vejo revoluções solares. Tudo mentira, efeito sem causa, signos, sinais e imagens. E eu não sei mais meus limites. Estraçalhei-me. E mesmo assim algo me condensa, acho que essa sala, acho que a idéia dela, pois ela mesma já não deve ter paredes faz muito tempo, ela deve ser mais velha do que eu, até. Ou talvez hajam duas dela, a que eu estou e a que eu sou, arapuca semântica que deixo para você aí, que é dado a elucubrações, cair; eu não, eu sequer sei o que significa isso, a gravidade não me afeta mais.
Reflexos, não reflexões, é o que sou. Nem sempre é meu rosto desfigurado pela sífilis que vejo quando olho no espelho, às vezes é o de uma senhora, o de uma criança, o de um velho, ou o teu. Fantasmas, todos

VI

Findo o último capítulo, fiquei curioso, coisa que não acontecia há muito tempo. Eu fiquei curioso e fui até a estante, procurar o Dicionário. Acontece que a estante fica lá embaixo, lá pela quinta linha, uma viagem arriscada. Para chegar nela precisei de um lampião, uns vaga.lumes, um terço, corda, um pantim e quatro substantivos, e mesmo assim ainda tive de usar um predicado, este. E a estante, enfim.

Elocubrar é a arte do devaneio, pelo que pude entender.

Ao lado do dicionário estava o Álbum e dentro dele nós. Eu, minha mãe, meu pai, meu avô, minha avó e minha irmã, a primeira que morreu, sua foto de anjinho no caixão, e a família ao redor, indiferente. Não digo com isso que já então estavam todos mortos, mas tão vivos quanto.

VII

Meu pai era um bocó. Minha mãe uma mimada que matou minha vó já de saída, no parto, e meu avô

Quando meu avô chegou aqui era tudo mato. Mandou derrubar tudo.Meu avô era um homem alto e forte e de nariz adunco, ou preto e banguela, tanto faz, mas alguém tinha que limpar aquela mataiada. Depois mandou matar um negro e o emparedou em um pilar, por superstição, e em torno dele edificou esta casa, a senzala, o engenho e as plantações.
E o açúcar espraiou-se até o horizonte. E nada mais importou nunca mais.
Os navios, e os continentes de onde vêm e para onde vão e até os que acham quando se perdem, e os ventos que sopram suas velas e as sereias que encantam seus marujos, e os diários de suas histórias e seus hinos. Tudo que já ficou para trás e tudo que ainda vem pela frente: Tudo açúcar, ou outro balangandã tilintante reluzente qualquer.

VIII

Meu avô enlouqueceu. Ouvia o negro emparedado pelos corredores. Morreu implorando por piedade.

De uns tempos para cá dei também de ouvir o negro, ele sibila por uma rachadura na base do pilar, ou sou eu que também fiquei louco. O mais provável é que sim. Não, isso é certo, tão certo quanto o lenga.lenga do negro. Mas isso foi mesmo de uns tempos para cá, depois que todos morreram, depois que peguei essa maldita doença que me debilita o corpo e me confunde as idéias. Antes ele não ousaria.
Noite passada deu pra ouvir bem. Ele dizia que perdoava meu avô, pois ele agiu por ignorância. Mas que eu fiz por merecer este inferno.

IX

O tempo está parado. A casa está vazia. Oca, reverbera o som do pássaro pendurado na gaiola do alpendre. Deve ser um novo dia. Que seja. Hoje deve ser um novo dia, diferente de todos os ontens, a partir de hoje os ontens nunca mais invadirão o amanhã. A manhã será de sol, luz e maresia e a noite, quando vier, virá de chapéu em mãos, pedirá licença, limpará os pés, e eu acenderei o lampião, servirei café, ouvirei suas histórias, muitas delas eu as vivi, ou fui testemunha, eu ouvirei suas histórias e nada mais. Quando esse novo dia raiar, nos despediremos cordialmente, velha comadre, “não preciso acompanhá-la à porta, você sabe o caminho”. Ela fechará a porta atrás de si e eu esquecerei dela outra vez, de sua tez pálida como a minha própria. Sobrará a lembrança de suas histórias, histórias que não contarei a mais ninguém, nunca mais, e amanhã, quando for hoje novamente, será para sempre um novo dia, eu abrirei os janelões de par em par e deixarei a luz entrar sem pedir licença para desgosto de meu mal, pois lá fora não haverá mais dor que ele reflita em mim, e se então você puder me ver, se eu existir então, você verá meu sorriso por baixo de meus bigodes cintilando a luz do dia estampada em meus dentes de ouro. O meu sorriso dourado crescendo, tomando conta dessa minha cara austera, ficando maior que eu, inundando o mundo, afinal o mundo sou eu... Então, sorria. Sorria comigo, amigo meu, saúde o dia, enchamos de alegria essa minha casa vazia. Rachemos esses pilares que sustentam toda essa ausência, alforriemos nossas almas incrustadas em colunas maciças o suficiente para agüentar partidos e discursos e ganância e hipocrisia, todo esse insustentável monte de nada, que ele venha abaixo, enfim. Já é hora, já é dia.

Mas não um novo dia. O tempo ainda está parado, a casa ainda está vazia. O pássaro continua cantando...

Sua música me angustia.

X

Eu odeio esta sala e seus malditos espelhos. Eu odeio minha vida milenar, há mil anos morrendo. Eu gostaria de estar preso em um farol, uma ponte, até, mas não aqui, na casa de meus pais, dos pais de meus pais, com esses gemidos desse negro e os chiados desse pássaro.
Em minha infância a vida era vivida sob as saias de telha vã dessa mãe matrona, dentro de seus muros, sob seus auspícios, e era sempre morna e aconchegante para mim. Lá fora a rua nos espreitava como um gavião a um franguinho, mas no futuro isso seria corrigido também, teria de ser, não sei se o tempo verbal concorda comigo, não me importo, mas a rua é um burro.chucro, um perigo à ordem em qualquer tempo de qualquer período, e teve de ser abatida. Foi assim que congelamos a história. Ou você não notou que desde o primeiro parágrafo não paramos sequer uma vírgula de caminhar em círculos?

É porque faço bem o meu trabalho.


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