quarta-feira, 19 de março de 2008

Crônica de Ana


um passo por vez, cada vez a última, até se chegar ao começo - Era esta a filosofia de Ana, para quem a vida corre para trás, na contramão da história. Ana está grávida de sua mãe, por quem seu pai se apaixonará perdidamente, da união dos dois, um casal, seus avós. A história repete-se, sistemas dentro de sistemas, engrenagens circulares de mote inverso, descambando no mar, origem de tudo, onde Ana está agora, contemplando seu futuro.
Mirando o horizonte Ana persegue com a vista uma jangada: podia ser um transatlântico, a esta distância é indiferente, tanto um como centenas, pensa, e toca o ventre. Ana não conheceu seus pais, não conhece seu país.
Aos seis órfã, aos doze estrangeira, aos dezoito uma menina igual a todas as outras, aos vinte e quatro professora, aos trinta mãe. Aos sessenta Ana estará de volta ao mar, talvez observando os barcos voltarem, suas redes cheias de peixes.
Tanto um como cem. A jangada agora é só um ponto indo de boca aberta na direção do horizonte, sua linha é tênue, tensiona, o sol é poente, o ponto some: o peixe foi fisgado, Ana também.

No dia 12 de Maio de 1968 nasceu João, sob o signo de touro, às 22:00 hrs, pesava 2 kg na ocasião, e isso é boa parte de tudo que se sabe dele. O resto são histórias de pescador, algumas tão estranhas ou simplesmente estúpidas que nem vale a pena contar. De certo só que nasceu prematuro e que morreu afogado, enroscado em uma rede de pesca, deixando esposa e filhos, João e Ana, essa ainda na barriga da mãe, que mal enterrou o defunto sentiu-se em apuros, viu-se obrigada a tomar uma decisão drástica, rezou, chorou, por fim resignou-se e escolheu criar apenas o menino, mais velho, braços fortes. Deixou a menina sob a tutela de um casal de gringos que a chamaram Ana, em homenagem à mãe, uma senhora realmente carente, viúva, doente, pobre João.

Para João Félix dinheiro não era sinônimo de felicidade. Muito menos antônimo. João adorava dinheiro e tudo que vinha junto, mais ainda o que vinha junto e por isso gastava mais do que podia, mas não se importava com as dívidas, elas eram só "coisas que vinham junto". Logo cedo pegou gosto pelo jogo, e como dava-se melhor com as cartas que com os peixes, trocou a rede pelo baralho, mas nunca foi de menosprezar a pesca, no mar como no poker, "caiu na rede é peixe". Foi no jogo que conheceu Ana, por quem apaixonou-se perdidamente. Em comum tinham só o presente, Ana não sabia de seu passado, João dali em diante não quis mais saber do seu: Ganhou muito dinheiro, perdeu tudo, de seus vinte anos de jogatina não comenta um dia sequer.
João voltou à pesca, aí vem uma boa sequência, ele arma o jogo, lança a rede, o mar contra ataca, dois ases na manga, um royal flash na água, enrosca-se na rede, fim de jogo para João.

Da praia Ana observa o ponto sumir no horizonte, sente uma fisgada, pensa na vida, em redes, cartas, engrenagens... "Se for menino se chamará João".

Nenhum comentário: